Cultura de conhecimento ou de desinformação científica? Pt. 3: Smog Free

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No passado fim de semana andava eu a deambular por esse 9gag fora, quando me deparo com mais um belo exemplo de pseudo-ciência que de vez em quando surge por aquelas bandas. Normalmente estabeleço um comentário crítico a explicar às mentes mais impressionáveis o porquê daquelas “invenções” não serem mais do que isso… e fica por aí. Algumas pessoas gostam do meu comentário, outras agradecem a intervenção e ainda há aquelas que acrescentam algo… Mas desta vez aconteceu algo fora do normal: recebi várias críticas que se baseavam no mesmo argumento: “Como é que tu sabes? Fizeste algum estudo? Não sabes se funciona enquanto não testares!”. Pois bem minha gente, em parte têm alguma razão: Não fiz nenhum estudo, e normalmente os ensaios são condições necessárias e praticamente suficientes (salvo algumas exceções). No entanto é possível descartar hipóteses sem que seja necessário testar porque há coisas que simplesmente não funcionam ou pelo menos não funcionam nos moldes em que são apresentadas…

Apresento-vos por isso um novo caso de desinformação científica: o projeto Smog Free

Smog Free by Studio Roosegaarde

O objetivo deste projeto da autoria do designer holandês Daan Roosegaard é a criação de infraestruturas capazes de converter smog em diamantes. Estranho, não é? Bem, é certo que não é assim tão simples e direto como possa parecer… Na realidade este projeto visa a redução da poluição atmosférica que se observa em grandes cidades mundiais (Pequim, Deli, Londres…) através da captura desses mesmos componentes e consequente emissão de ar “limpo”. Até aqui nada contra, pelo contrário. Tem havido um grande foco na investigação destes processos, e os resultados são bastante promissores. A problemática aqui é a afirmação que durante este processo de captura se procede ao processamento dos componentes à base de carbono, convertendo-os posteriormente em diamantes sintéticos. Sim, isso é possível. Aliás, é possível converter um gatinho de estimação (ou outro organismo qualquer) num diamante, bastando apenas que ele já não se encontre vivo (também se estiver não irá sobreviver ao processo ah ah ah), seja cremado e posteriormente processado, e finalmente uma quantidade significativa de dinheiro porque o processo é absurdamente dispendioso (e não, não é rentável porque os diamantes sintéticos valem bastante menos no mercado do que o que foi gasto na sua produção).

Todo este processo de captura, processamento e conversão a diamante iria ocorrer em belas torres com 7 metros de altura, capazes de processar 30.000 m3/h de ar (qualquer coisa como 40 toneladas, dependendo da maneira como esse valor foi determinado), usando energias renováveis e necessitando apenas de uma potência de 1700 watts. Sim, mil e setecentos WATTS!!! Não quilowatts, não megawatts, não gigawatts, WATTS apenas! (ou basicamente a potência de um secador de cabelo mediano)

Este valor fez-me rir imenso de tão ridículo que é! Quem fez esta estimativa? O Professor Chibanga? Não acredito, por questões tecnológicas e de segurança, que fossem implementar a síntese de diamantes nas torres… Isso seria simplesmente estúpido já para não falar ridiculamente complexo. Mas mesmo assim, gente, 1700 watts mal chega para bombear o caudal de ar a processar quanto mais criar diamantes… Ok, mas vamos por partes… Vamos analisar cada revindicação deste projeto e perceber se estamos perante um ilusão ou apenas uma má estratégia de marketing.

Cada torre é capaz de processar 30000 m3/h de smog, convertendo-o em ar limpo.

Sim, conseguir consegue. Ou pelo menos os valores da instalação não permitem afirmar que é impossível, já que 30k m3/h não é um valor impressionante e não requer uma infraestrutura assim tão grande.

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Por outro lado, o principio de tratamento de ar contaminado com partículas suspensas e captura de óxidos de azoto, enxofre ou carbono também não é novidade. Já existem várias tecnologias em uso (e outras tantas em estudo) que vão desde o uso de absorventes, adsorventes, membranas, permuta iónica…, por isso o principio não será de estranhar apesar da notória falta de informação técnica disponibilizada (apesar de tudo referem no final da página de campanha no Kickstarter que a tecnologia por eles usada ainda não sofreu um processo de scale-up… Ups…).

A partir dos poluentes removidos é possível criar diamantes que mais tarde servirão para financiar mais torres.

Diamantes… o objetivo dos alquimistas lunáticos dos tempos modernos… Sim, minha gente, é possível criar diamantes sintéticos a partir de compostos à base de carbono e no smog existe uma boa quantidade desses compostos. A questão aqui é se é fácil ou não sintetizar esses mesmos diamantes. Resposta simples: não é! A síntese de diamantes é normalmente baseada em processos HTHP (High-Temperature High-Pressure) ou CVD (Chemical Vapor Deposition)  e requer uma fonte de carbono isenta de outras espécies atómicas sob o risco de o produto obtido ser de baixa qualidade e com fracas propriedades mecânicas.

Ou seja, além dessas torres terem de acomodar todo o sistema de sucção, filtração e captura, ainda tinham de incluir reatores que conduzissem à formação de carbono numa forma bastante pura mais o sistema de síntese de diamantes, tudo isto sem precisar de operadores, sistemas de permuta de calor, equipas permanentes de manutenção, etc etc etc. Uau, se este devaneio funcionasse era um sonho do ponto de vista industrial.

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Depois vem aquela bela revindicação de que os diamantes produzidos seriam usados para financiar novas torres. Ok, para terem noção, por quilate, os diamantes sintéticos custam aproximadamente 50 vezes mais a produzir do que os equivalentes obtidos por exploração mineira. E vocês perguntam: então porque raio se sintetizam diamantes? É simples: diamantes naturais são usados maioritariamente para joelharia enquanto que os sintéticos são usados em aplicações mais técnicas e industriais (indústria de abrasivos e sistemas de corte), quando se quer ter um controlo mais apertado das qualidades mecânicas, ou quando o seu processamento é complexo. Serão então os diamantes sintéticos economicamente sustentáveis? Não, custos de produção de ~2300€ por quilate é uma fatura elevada, sendo que o preço de mercado dos diamantes é algo difícil de vaticinar porque depende de imensos fatores, logo não é possível garantir qualquer sustentabilidade económica (a menos que se produzam diamantes de 100 gramas… Aí a história seria outra). E ainda nem se estar a ter em consideração o impacto que a introdução desregulada destes diamantes poderia ter no mercado.

As torres precisam apenas de 1700w de potência para operar, e são alimentadas por energias renováveis.

Uma vez mais ri-me… Acho que nem vale a pena fazer contas para demonstrar o quão ridículo é este valor. 1700w… Querem eles afirmar que o meu forno gasta mais a fazer um frango assado do que eles a produzirem diamantes. Sendo assim que se lixe o galináceo e que venham daí os meus diamantes!

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Enfim… Mas bom vamos lá a umas contitas muito simpáticas:

  • Pegando num custo médio de 2000€ por cada 200mg de diamante, e assumindo que apenas 50% desse valor corresponde à fatia dos custos de síntese (isto é uma estimativa extremamente conservadora) teríamos um preço final de 5000€ por grama.
  • Assumindo que, das 40 toneladas de smog processado por hora, 0.05% m/m é CO2, ficamos com um potencial de captura de 20 kg de CO2 que corresponde aproximadamente 5.5 kg de carbono.
  • Entre o processo de captura, purificação e conversão assume-se que apenas se consegue aproveitar 500g de carbono por hora, perfazendo um total de 2,5 milhões de €.
  • Convertendo esse valor para o equivalente em energia elétrica, e assumindo um valor fenomenal de 0.05€/kWh, ficaríamos com um valor absolutamente ridículo de 50 GIGAWATTS-HORA!!!! Nada mais nada menos que ~35 mil vezes mais do que eles tinham previsto.
  • Pegando no cenário anterior, e assumindo as falhas que este cálculo possa ter, 1700w permitiria sintetizar 5.6mg de diamante por hora… A um preço máximo de mercado de 15000€ por quilate, daria para gerar 420€ por hora, sendo por isso necessário que se produzisse um diamante de 1 quilate (+/-36h de carbono removido) o que é bastante complicado.

OBVIAMENTE que este exercício foi um pouco estúpido, porque tal como referi não acredito que este sistema fosse todo integrado na torre porque é simplesmente impossível NAQUELAS condições. Mesmo assim, e considerando apenas o processo de captura e purificação, 1700w é notoriamente pouco para o caudal proposto…

Depois ainda vinha o facto de ser tudo movido a energias renováveis, que em questões de funcionamento de equipamento industrial não é a melhor coisa.

As torres Smog Free ajudam a diminuir a poluição.

Se conseguirem operar unicamente recorrendo a energias renováveis, as torres irão ajudar a diminuir a poluição do ar, mas se entrarmos com a produção de diamantes, todo este projeto irá produzir muito mais poluição do que aquela que consegue reduzir… E não será muito difícil entender o porquê, basta olharem para as contas acima…

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Divulgação e receção dos media

Como já se viu noutros casos, a falta de cultura científica dos media ajuda a propagar falsa informação, e este é mais um exemplo disso. Já referi que encontrei referências no 9gag, mas uma vez mais jornais/televisões como o The Guardian, CNN, NY Times, BBC, China Central TV, canais de Youtube, entre outros, ajudaram a espalhar esta falsa profecia… E como não podia deixar de ser lá veio o já comum crowdfunding, onde desta vez 1577 pessoas foram lesadas em 113513€, estando agora a serem financiados pelo governo chinês.

Nossa análise

Será o projeto ridículo? É certo que tem reivindicações megalómanas e infundadas, mas acredito que não surgiram com o intuito de lesarem, mas sim fruto da ignorância e de alguma estratégia de marketing menos ética.

Como poderia ser melhorado? Bem, largando a ideia peregrina de criar diamantes só que nesse ponto iriam cair no mesmo saco de outras ideias semelhantes e que não conseguem ver a luz do dia por não serem económica e ambientalmente viáveis.

Por outro lado, a melhor maneira possível de remover smog acaba por ser a mais simples de todas: não o criar em primeiro lugar. Basta reduzir as emissões para que as condições atmosféricas movimentem e espalhem o smog de forma a este se dissipar.

-Ruben

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